Formações para a educação escolar quilombola e caiçara integram a construção de práticas pedagógicas pela implementação da educação diferenciada nos territórios da Bocaina.
“A educação diferenciada é uma pauta crescente nas comunidades porque já existe o senso comum de que uma escola sem contexto é tão ruim quanto a falta da escola. Só a educação diferenciada pode reforçar a luta política das comunidades, a identidade cultural e a consciência coletiva pela defesa dos territórios e dos modos de vida tradicionais”, destaca Ronaldo dos Santos, quilombola do Campinho (Paraty-RJ) que integra o Coletivo de Educação Diferenciada.
Aconteceu em Paraty, no dia 15 de junho, um ciclo de formações do Programa Escolas do Território para os professores que atuam com a educação diferenciada caiçara e quilombola nas escolas municipais de Paraty. Foi realizada a Formação Caiçara para o 1º Segmento, na Câmara Municipal; a do 2º Segmento na sede do OTSS; e a Formação do 1º Segmento Quilombola na escola do Quilombo do Campinho. Essas atividades foram oferecidas pelo Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR-UFF), o Colégio Pedro II (CPII), em parceria com a Secretaria Municipal de Educação (SME) e apoio do Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS).
Essa formação abrange hoje 17 escolas e é fruto de uma luta do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba (FCT) pela educação diferenciada no território. Essa luta é apoiada pelo Coletivo de Educação Diferenciada, que é formado por integrantes do FCT e parceiros de outras instituições, como a Universidade Federal Fluminense (UFF), o Observatório dos Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal Rural do Rio do Janeiro (UFRRJ), o Colégio Pedro II (CPII), a Pontifícia Universidade Católica (PUC), entre outros apoiadores.
“Esse tipo de formação é fundamental para que os professores tenham a oportunidade de conhecer melhor a comunidade e o sujeito para o qual ele vai planejar determinada educação. E tem que ser assim, só planejamos bem aquilo que conhecemos”, destaca Elenildes Maria Reis, pedagoga da rede municipal de educação, coordenadora da E. M. Quilombo do Campinho da Independência que atua nas escolas do Campinho e do Cabral. A profissional, que participou da Formação do 1º segmento que aconteceu na escola do Campinho, ressalta que nesses encontros formativos torna-se possível dialogar com maior respeito pela cultura do outro. “O professor é um sujeito pesquisador, ele deve conhecer o local que ele atua para respeitar seu local de trabalho e as pessoas com quem está lidando”, completa.
Educação que valoriza as Identidades culturais
“A educação diferenciada fortalece a identidade cultural de uma comunidade tradicional na medida em que seu currículo e seu projeto político pedagógico estiver voltado para o projeto de sociedade que aquela comunidade estiver construindo”, afirma o Prof. Domingos Nobre do Iear (UFF). “Essa prática vai fortalecer as identidades culturais seja de indígenas, caiçaras ou quilombolas, na medida em que o currículo da escola estiver atendendo essas necessidades postas pelo seu projeto de sociedade, então é um currículo que deve estar antenado muito fortemente essas realidades locais.” conclui.
“Penso que não se pode garantir que as futuras gerações lutem e valorizem sua cultura e seu território, mas podemos lutar hoje para que crianças e jovens tenham acesso a uma educação diferenciada e que pode lhes proporcionar consciência crítica do processo sócio-histórico que suas comunidades viveram/vivem”, pontua Maria Inês Rocha de Sá, Coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Educação Diferenciada (Nepedif) do Colégio Pedro II. Penso que a educação - escolar e não escolar - é o caminho para que essas gerações possuam tal consciência e assim, serem capazes de lutar por seus direitos.
Educação que conecta as raízes e o futuro
Iaci Sagnori é professora nas escolas da Praia do Sono (Martins de Sá) e do Pouso da Cajaiba e atua com o 2º segmento da educação caiçara, que compreende o trabalho diário com adolescentes. “Essa é uma geração muito fascinada pela tecnologia, pelo meio virtual, por isso é um desafio ainda maior discutir e trazer na prática educacional os costumes e tradições dos avós”. Segundo ela, a nossa sociedade não propicia a valorização dos saberes dos mais velhos e na educação diferenciada a escola coloca isso em evidência e cumpre um papel muito especial.
“Mesmo que a princípio seja meio a contragosto, com certeza isso fica guardado, para momentos futuros. Aquele jovem ou aquela criança vai olhar para si, para sua história e isso fortalece sua perspectiva de futuro”. A professora acredita que essa ferramenta colabora para que jovens e crianças construam o futuro da sua comunidade: “Dentro do sistema que vivemos hoje, globalizante e imperialista, afirmar uma identidade cultural específica é ir no contra fluxo social em que vivemos e com certeza uma semente poderosa para que esses jovens construam uma comunidade mais saudável e sustentável”, finaliza.
“Nós só iremos ganhar essas novas gerações e trazê-las para dentro do currículo da escola à medida em que a escola conseguir dialogar com o universo simbólico desses jovens, dessas crianças. Precisa ser uma escola moderna, conectada com os avanços da tecnologia, com os avanços do mundo contemporâneo, mas numa perspectiva coletiva, solidária, de soluções conjuntas para problemas que essas infâncias e essas juventudes têm, questões relacionadas ao mundo da cultura, mundo do trabalho, da diversão, do lazer e da brincadeira”, salienta o professor Domingos Nobre.
O especialista explica também sobre a necessidade de cada escola dialogar com as diferentes realidades das comunidades, uma vez que a infância guarani é diferente da quilombola, que é diferente da caiçara.
“O Currículo escolar é um território em disputa”
“O diálogo com as famílias não é tão simples e não é consenso em todas as comunidades sobre a necessidade da educação diferenciada para atender seus povos. Nós entendemos que currículo é também um território em disputa e é um território ideológico” Domingos afirma que parte das famílias compreendem a importância de uma educação diferenciada pautada num currículo integrado, interdisciplinar e mais articulado com a realidade local, ainda que muitos outros não compreendam essa perspectiva e esperem a escola conservadora e convencional.
“Essa forma de educação empodera por meio de um currículo pois, a criança se coloca como autor do seu conhecimento e isso gera pertencimento, orgulho, diferente da educação formal em que o currículo vem pronto. Se trata de uma oportunidade dele se firmar como ator do processo e autor da sua própria história, deixando o currículo voltado para a vivência da cultura local”, conta Elenildes Maria Reis.
A luta cotidiana pela implementação de políticas públicas para a educação diferenciada escolar integra as bandeiras de luta do FCT. No início do ano foi lançado um dossiê sobre a situação escolar das comunidades de Paraty que pode ser conferido no link.
Texto: Comunicação Popular FCT - Vanessa Cancian
Fotos: Eduardo Nápoli Editoração Eletrônica: Comunicação Popular FCT - Vanessa Cancian